Telmo Rodríguez é uma das mais respeitadas personalidades do mundo do vinho. Os epítetos de
“polêmico” e “enfant terrible” frequentemente são citados junto a seu nome, mas ao longo dos
anos, a trajetória de Telmo mostrou que seu tipo de polêmica não é o da ruptura, e sim do
resgate das antigas tradições perdidas do vinho espanhol. Telmo despreza o rótulo de ‘flying
winemaker’, do qual já foi vítima (diz aceitar no máximo o termo “driving winemaker”), e não se
deslumbra com a enorme repercussão que sua assinatura causa na atualidade. “O fato de seus
vinhos serem classificados como excelentes a notáveis é um tributo ao seu talento e a sua
atenção ao detalhe”, reconheceu Robert Parker. Em vez de “superenólogo”, Telmo prefere o título
de “restaurador do vinho” ou “arqueólogo de vinhas”.
Membro de uma família de produtores da Rioja — proprietários da Granja Remelluri, uma bodega
boutique que sempre esteve entre as preferidas de Parker — ele estudou em Bordeaux e trabalhou
ao lado de alguns dos maiores nomes da França, como Jean-Louis Chave, no Rhône, e o Château Cos
d’Estournel, em Bordeaux. Em vez de assumir logo de imediato a propriedade familiar, Telmo optou
por um caminho próprio: correr a Espanha em busca de territórios históricos e originais, de
variedades autóctones esquecidas e de métodos de vinificação seculares. Elaborar vinhos
autênticos, que espelhem com fidelidade o seu território, tem sido sua maior obsessão. Telmo é
um dos maiores defensores do terroir e da diversidade do vinho na Espanha.
Nesta entrevista irreverente, Telmo Rodríguez fala de seus surpreendentes projetos, desmonta o
mito do enólogo-celebridade, tão comum hoje em dia, e reconhece: “trabalho para menos de 5% dos
consumidores”.
No começo da carreira, você deixou a vinícola de sua família para descobrir novos terroirs em
toda a Espanha. O que o moveu nesta aventura?
Espanha é um país vitivinícola bastante antigo — e mesmo assim, nos anos 1990, ainda havia muito
para ser descoberto, ou redescoberto. Desde o século XIX o que tínhamos era praticamente apenas
a Rioja, Jerez e grandes empresas industriais. Minha sensação era a de estar em um país
selvagem. Esta aventura me trouxe a grande sorte de poder desbravar zonas maravilhosas, com
vinhedos muito antigos — uma viticultura herdada da Idade Média.
O fato de elaborar tintos e brancos por toda a Espanha fez com que algumas pessoas comparassem
você a um desses “flying winemakers”, que produzem vinhos de estilo internacional. Mas, o
que você fez foi exatamente o oposto, resgatar vinhos que estavam esquecidos, quase
extintos:
É verdade que me puseram esta etiqueta de flying winemaker, da qual eu não gosto nem um pouco. E
quando isso apareceu em uma publicação importante, quem mais me defendeu foi o jornalista
brasileiro Luiz Horta. Ele disse uma coisa que me emocionou: “como se pode tratar Telmo como
flying winemaker, que é o profissional que destrói os vinhos autênticos, quando ele faz justamente
o contrário: resgata vinhos históricos, como o Molino Real, do século XVIII”.
Eu me interesso muito pela cultura de nossos ancestrais. Tudo o que sabemos hoje foi transmitido
a partir deles. E também acredito que os vinhos sejam frutos de lugares específicos. A origem de
um grande vinho é a mágica de seu território. Esse mérito não é de um winemaker ou enólogo. O
enólogo tem que saber respeitar o lugar. E em meus projetos, procuro respeitar e entender a
história de cada local. Nesse sentido, sempre insisti em trabalhar com castas espanholas quando
a moda na Espanha da época era plantar Cabernet e Merlot.
No momento atual, minha luta tem sido contra a [forma de condução da vinha em] espaldeira, porque
acredito que a melhor forma de condução na Espanha é a vinha em vaso, muito antiga. Acredito que
minha grande contribuição ao mundo do vinho tem sido devolver ao consumidor inteligente o gosto
perdido de zonas espanholas incríveis.
Como surgiu o Molino Real?
Este vinho é resultado de um trabalho que se assemelha ao de um arqueólogo, e está muito baseado
no resgate da história. Antigamente, todos os grandes vinhos eram doces e, entre eles, havia o
Mountain Wine, um vinho elaborado em Málaga e citado até por Shakespeare. Eu encarei a
recuperação do Mountain Wine como um dever. Com o Molino Real conseguimos recriar este que é um
dos grandes vinhos do mundo. Infelizmente as pessoas compreendem cada vez menos os vinhos de
sobremesa. É uma pena. Mas o projeto teve grande êxito...
Certa vez perguntaram a Hugh Johnson qual era o melhor vinho que ele havia tomado na vida. Não
era nem um La Tachê, nem um Romanée-Conti ou um Lafite. A resposta foi: o Mountain Wine de 1850.
Então, enviei para Hugh Johnson a primeira safra do Molino Real e ele acabou escrevendo um
artigo muito bonito no qual dizia que tinha visto um “fantasma do Mountain Wine 1850”. É uma
história de sucesso em um certo sentido, embora eu continue investindo dinheiro todos os anos e
perdendo dinheiro todos os anos com o Molino Real. Mesmo assim, esse vinho é um orgulho para
mim. É preciso explicar às pessoas que elas deveriam guardar o Molino Real porque dentro de uns
20 anos descobrirão um dos grandes vinhos de sua adega.
Você acha possível elaborar vinhos que mostrem as qualidades de um terroir específico e que,
ao mesmo tempo, sejam apreciados pela maioria das pessoas?
Eu não sei fazer outro tipo de vinho. Não acredito em receitas ou fórmulas. Molino Real, Pegaso
ou Gaba do Xil, por exemplo, são vinhos que têm a qualidade de explicar seu respectivo lugar de
origem. Não me interessam as mesclas standard de Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc e
Petit Verdot simplesmente porque são uma espécie de ‘garantia de sucesso’. Enquanto algumas
bodegas da Rioja fazem, no mínimo, 1 milhão de garrafas — são bodegas industriais — todos os
nossos vinhos são elaborados em pequenas quantidades. Eu sei que eu trabalho para menos de 5%
dos consumidores de vinho, mas essa é a minha proposta.
Mas você também elabora vinhos de muito sucesso, conhecidos mundialmente como de boa relação
qualidade-preço, como é o caso do branco Basa e do tinto Dehesa Gago.
Quando iniciei meu projeto, a única forma de conseguir produzir no futuro um grande vinho seria
começando com um vinho de sucesso como é o Basa — foi o único vinho que deliberadamente
planejamos em um estilo fácil de gostar. Estou muito orgulhoso porque o Basa me proporcionou
muitas coisas boas. Ele e o tinto Dehesa Gago nos deram visibilidade e também vontade de fazer
vinhos excepcionais, como Altos de Lanzaga, Pegaso e Molino Real.
O que você pensa sobre o culto aos enólogos, tão comum hoje em dia?
Vivemos em um mundo no qual os enólogos são tratados como verdadeiras estrelas. Para mim, um
enólogo não tem essa importância. O vinho se faz sozinho; nossos ancestrais já executaram o
trabalho de buscar os territórios mais adequados para o cultivo da videira e selecionaram as
variedades mais apropriadas, e são as leveduras que transformam o açúcar em álcool, não o
enólogo. O que precisamos fazer é observar e respeitar a natureza. Por isso, acho que não temos
de nos dar tanta importância. Se tivermos a sorte de possuir um grande vinhedo, é como ganhar na
loteria.
Há pouco tempo você retornou à Granja Remelluri para coordenar a produção dos vinhos desta
propriedade de sua família, e eles têm recebido comentários elogiosos de toda a imprensa
especializada. O quemudou desde a sua volta a Remelluri e como você compara os vinhos feitos
ali com os vinhos da Compañia de Vinos Telmo Rodríguez?
Remelluri é um lugar excepcional, seguramente a vinícola mais antiga da Espanha. No século XIV —
cinco séculos antes do surgimento das bodegas históricas da Rioja — Remelluri já era uma
propriedade vitivinícola. E antes disso, os romanos, há dois mil anos, perceberam que ali havia
uma energia especial e construíram um santuário muito importante. Todos os grandes vinhedos são
lugares assim incríveis.
Meus pais tiveram a sorte de comprar a Granja Remelluri e, depois de restaurá-la, voltaram a
produzir o vinho de Remelluri. A minha entrada na vinícola da família suscita algum interesse,
mas o resultado de meu trabalho ali talvez possa ser percebido somente daqui uns 2 a 4 anos.
Tenho a convicção de que esta propriedade tem a capacidade de se converter no vinho mítico da
Rioja. É um vinhedo que nunca em sua história recebeu um herbicida, nem fertilizantes ou seleção
clonal. Voltei para a Rioja com o espírito de escapar da onda industrial. É uma região um pouco
como Champagne — que se tornou uma zona de marcas. Isso porque no século XIX, investidores
chegaram ali com o intuito de produzir vinhos, mas não se fixaram e as bodegas, mesmo as
centenárias, desgraçadamente se transformaram em bodegas industriais. Meu interesse em Rioja é
me afastar do modelo industrial e recuperar o modelo humano do século XVIII. O projeto Lanzaga,
da Compañia de Vinos Telmo Rodríguez, espelha isso. Lanzaga significa Lanciego, que é uma
povoação na qual exploramos apenas 20 hectares, o que resulta em menos de 7 mil caixas, uma
escala praticamente artesanal. Portanto, Lanzaga é o vinho de um vilarejo, diferentemente de
Remelluri que é o vinho de uma propriedade. Quero fazer um projeto sensível, mas muito profundo,
que consiste em explicar o gosto de um lugar e romper com a ideia de que uma degustação de Rioja
seja uma degustação de marcas. É minha pequena revolução.
Antes do século XIX não era mais ou menos assim?
Sim. No século XVIII a vinha estava nas mãos de pequenos aristocratas que possuíam 5 hectares, 10
hectares, no máximo 20 hectares. Eu quero voltar a esse modelo de 15 ou 20 hectares, que é mais
excitante e bonito. Queremos mostrar esta Rioja.
A grande maioria das pessoas, quando pensa em vinhos espanhóis, lembra de Rioja e Ribera del
Duero, mas muita gente não sabe a diferença entre uma região e outra. Como você explicaria
isso de uma forma simples?
As duas grandes regiões da Espanha eram, na verdade, Rioja e Jerez. E o êxito de ambas foi também
sua destruição. Bastava o vinho ser um Rioja para ter garantia de sucesso comercial. O mercado
demandava e todo mundo plantava indiscriminadamente, em locais bons ou ruins. Esse foi o maior
erro tanto da Rioja como de Jerez. Espanha abriga uma centena de zonas incríveis, inclusive
Ribera del Duero, que tem a imagem de ser uma região clássica, mas a denominação de origem
Ribera del Duero é de 1984! Ribera é muito interessante, como Priorato, Toro, entre outras
regiões espanholas únicas. A casta que se utiliza tanto em Rioja como em Ribera é Tempranillo,
mas antigamente em Rioja se mesclava esta com outras 15 variedades – o que se perdeu por culpa
das bodegas industriais. Rioja é uma zona com influência atlântica e mediterrânea; Ribera é uma
zona de altitude com uma paisagem muito dramática. Uma não tem nada a ver com a outra, na
verdade.
Além disso, dentro da própria Rioja há muitas Riojas, e por isso simplificar demais as coisas não
corresponde a uma realidade de qualidade. Quando faço degustações com consumidores, a primeira
coisa que as pessoas me perguntam é: “tem madeira americana ou francesa?”. Dão mais importância
ao processo do que à origem. É necessário começar a falar de coisas mais interessantes e mais
profundas. Rioja não é carvalho francês ou americano. Não se resume a mais meses ou menos meses
em barrica. O que importa quantos dias o La Romanée-Conti fermenta ou o nome do seu enólogo?
Temos que deixar para trás esse mundo do processo e começar a falar mais da origem. E na Rioja
há muitas origens, em Ribera del Duero há centenas de Riberas del Duero. Este é um mundo
muitíssimo mais complexo e gostoso para o consumidor.
Existe alguma região na qual você ainda não faz vinhos mas gostaria, por exemplo Jerez?
Eu gosto muito de Jerez. É uma zona interessante, de vinhos únicos. Pena que tenha sofrido um
processo de industrialização que obrigou os viticultores artesãos a venderem seus vinhos às
grandes bodegas. No entanto, neste momento está ocorrendo uma espécie de revolução, uma retomada
importante dos pequenos produtores. Sobre os planos da Compañia de Vinos, acredito que já fizemos
muita coisa. Temos projetos em 9 zonas vitivinícolas espanholas: Cigales, Rioja, Valdeorras,
Ribera del Duero, Toro, Cebreros, Málaga, Alicante e Rueda, onde costumamos trabalhar com
famílias que há centenas de anos cultivam pequenas propriedades. São projetos que requerem
tempo, pois não existe uma fórmula para um grande vinho.
É como uma árvore, que fica bonita quando atinge 150 ou 200 anos de idade. Elas são plantadas para
o futuro. Hoje, depois de quase 20 anos da inauguração da Compañia de Vinos, começamos a ver os
primeiros frutos do nosso trabalho e a grande emoção é que dentro de mais 20 anos, eles serão
muito melhores. Hoje em dia as pessoas dão muita importância para a uva.
Na sua opinião existe uma uva espanhola que seja a melhor?
Detesto desmontar sua pergunta, na minha opinião a uva não tem nenhuma importância. Os grandes
vinhos nunca se resumem à variedade. Um grande Musigny não é um Pinot Noir, um grande Puligny
não é um Chardonnay, um grande vinho de Didier Dagueneau não se resume à Sauvignon Blanc. Nossos
ancestrais tiveram inteligência e capacidade de observação e decidiram plantar as variedades que
melhor explicavam seus respectivos territórios. Em Hermitage é a Syrah, já em Chateauneuf du
Pape identificaram 13 variedades. E um grande vinho de Rioja é também uma mescla de diversas
uvas. Por isso, é muito pobre nos restringirmos à ideia de variedade. Assim como um papel em
branco é uma ferramenta por meio da qual o escritor revela sua história, a variedade funciona
como um veículo de transmissão do gosto de um lugar. Uma vez, um jornalista pouco culto, ao
avaliar o Molino Real, disse que o vinho não se parecia com a Moscatel. Esta é uma casta que tem
uma expressão muito característica em vinhos mais simples. O Molino Real é elaborado com a
Moscatel, mas ele é tão profundo que o caráter da Moscatel dá lugar a uma expressão mil vezes
mais complexa. Essa é a mágica do vinho. Se não fosse assim, todos os tintos e brancos seriam
iguais.
Mas a uva não deixa de ser algo no qual o consumidor presta atenção hoje em dia. Tanto que
muitos produtores em Rioja Alavesa arrancaram as vinhas de Garnacha, mesmo sabendo que essa
variedade se dava muito bem na região, para plantar Tempranillo, que estava na moda.
Na contra-corrente, meus pais fizeram, nos anos 60, uma coisa muito importante: enxertaram no
vinhedo de Remelluri todas as castas que já tinham sido plantadas na propriedade. Hoje temos uma
vinha com 25 variedades. Por isso, falar apenas de uma ou três castas de Rioja é um
empobrecimento. Não podemos esquecer que a viticultura mundial, nas últimas cinco décadas, tem
servido a um único objetivo, que é dramático: trabalhar menos e produzir mais. Com isso,
“matamos” muitos grandes vinhedos. Atualmente, há uma mudança de conceito em direção à produção
de uvas em menor quantidade, privilegiando seu caráter, graças à viticultura biodinâmica e ao
surgimento de produtores sensíveis. É um passo para acabar com um momento negro da viticultura
global e restaurar a viticultura de verdade.
A Espanha tem uma grande quantidade de vinhedos antigos e a maior parte deles utiliza uma
condução do tipo bush vine (vinha em vaso). No resto do mundo esse é um plantio raro. Existe
alguma vantagem dessa forma de vinhedo?
Esta é minha nova luta. Acredito que um dos grandes patrimônios da Espanha sejam os vinhedos em
vaso, ou “bush vines”. Eles são uma condução perfeita para o nosso clima e é preciso
respeitá-los. Eu tenho uma aposta muita clara na preservação desses vinhedos originais. Na
Granja Remelluri, por exemplo, estou fazendo uma coisa que para muitos é uma loucura:
transformar as áreas plantadas em espaldeira em vinhas em vaso. Daqui 20 anos quero que todos os
vinhedos sejam clássicos, em vaso e com mescla de variedades. Minha defesa não é simplesmente a
favor do vaso — faço uma defesa do autêntico, do original, do patrimônio. Assim como respeitamos
um edifício do século XVI que é de pedra, madeira e barro, o vinhedo também é um patrimônio e
não devemos desvirtuá-lo, pasteurizá-lo. Estou muito orgulhoso pelo fato de que todos os meus
vinhos de Rioja, Ribera del Duero e Toro são elaborados a partir de vinhedos em vaso. São vinhos
que me dão prazer de produzir porque são um reflexo de 2 mil anos de história.
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